25 dezembro, 2023

CALENDIÁRIO


Diz ela que tem vinte e dois anos e muitos meses. Faz sentido, pois não é o mesmo que ter só vinte e dois anos. Muitos meses são muitos meses e muita coisa acontece neles. E há quem viva mais num mês do que outros em anos. Teria assim o seu interesse marcarmos a idade por meses em vez de anos, unidades de tempo bem distintas, percebendo-se melhor como a ampulheta nos vai fazendo a folha. O ideal seria mesmo em dias. O problema é a sua grande quantidade massificar o tempo, perdendo-se com isso a importância de cada dia ["-Tás velho, pá, que idade tens? - Calma aí, ainda só tenho vinte e dois mil seiscentos e oitenta e três dias", mais parecendo um número da lotaria]. Daí o melhor seria até nem haver uma consciência do tempo e da idade que se tem, se faltam muitos ou poucos dias, ou meses, para o último grão da ampulheta nos defenestrar. Tal como com os alunos cujo professor não marca os dias dos testes, obrigando-os assim a estarem sempre preparados para a aula seguinte, talvez também olhássemos para os nossos dias, meses e anos com outra sabedoria.

24 dezembro, 2023

PRIVADAS VIRTUDES


O mesmo se passa com as qualidades ou virtudes. Há quem tenha imensas, mas sendo pouco praticante. Não praticar por não praticar, antes os vícios. Será mais de enaltecer quem é bem sucedido por não fazer o que deseja porque não deve, do que ser bem sucedido por não fazer o que deveria desejar.

23 dezembro, 2023

NATAL É QUANDO UM GATO QUISER

Boas festas, boas festas, boas festas, boas festas, boas festas. Ao contrário do de Cheshire, o meu gato, rebaptizado Orlando porque veio na condição de gata até alguém descobrir que afinal era um gato, não fala. Mas eloquência natalícia não lhe falta para expressar o desejo de boas festas várias vezes ao dia ao longo do ano. 

22 dezembro, 2023

CARTÃO DE NATAL

Museu do Louvre, 41 x 34 cm [1640]

Este quadro, atribuído a Rembrandt ou ao seu estúdio, não tem um mas três títulos: tanto pode ser Sagrada Família com Santa Ana, como O Ofício do Carpinteiro ou Família Holandesa num Interior. Motivo para serem dois quadros diferentes. O seu centro de gravidade está na mulher que amamenta o bebé, não só pela posição que ocupa no espaço, mas também por ser para lá que são levados os olhos através do calor da luz. Saber ainda, pelo título, que se trata de uma mãe que amamenta o filho de um deus, ele mesmo também um deus, como não se cansaram de mostrar os velhos Padres da Igreja e os teólogos medievais, coloca o espectador em pleno território sagrado. Mas se passarmos a ver uma simples família holandesa, ou O Ofício do Carpinteiro é este, cujo rosto nem sequer vemos, que conquista o centro. Rembrandt, ou um seu aluno, estaria então a mostrar uma simples cena da vida quotidiana na oficina de um carpinteiro que trabalha enquanto a sua mulher amamenta o seu filho, um cenário cuja beleza e tranquilidade provoca um enaltecimento profano. É uma mulher e uma criança, e basta, e nem o carpinteiro precisa de ser S. José para conquistar a virtude doméstica de quem trabalha na oficina para sustentar a família. Para se perceber que a morte da religião está longe de representar a morte da beleza, da interioridade, da espiritualidade, da humanidade, é nos interiores holandeses que devemos pensar, ainda que Rembrandt não seja, tecnicamente, um pintor de género, como vieram  a ser todos aqueles que fizeram desse período um dos mais belos da história da pintura. Tão bonito, ou mesmo mais bonito do que ver a mãe de Jesus a amamentar, é ver uma mulher a amamentar, ainda que a humilde mulher de um carpinteiro. Embora prefira a segunda versão, há uma vez no ano, esta, em que gosto de o ver com os olhos da primeira. Uma coisa é não poder escapar ao seu destino, outra, bem mais simpática e amigável, é não querer escapar ao seu destino.

20 dezembro, 2023

GOLCONDE

Para aí há uns três ou quatro anos, comecei a ter alguns alunos a agradecer-me o enunciado do teste que lhes entregava ao passar pelas respectivas carteiras, um sinal de boa educação que me deixava muito bem impressionado. Tenho agora turmas nas quais à medida que vou distribuindo os enunciados, vou ouvindo "obrigado, obrigado, obrigada, obrigada, obrigada, obrigada, obrigado, obrigada, obrigado, obrigado, obrigado, obrigada", o que mais parece uma versão oral do texto escrito por Jack Torrance na sua máquina de escrever, chegando com isso a sentir saudade do tempo em que nenhum aluno, ou apenas alguns, agradecia. Admito, entretanto, que tal saudade possa não ser inocente, podendo resultar de uma certa má consciência por não me sentir obrigado a responder "não tem de quê, não tem de quê, não tem de quê, não tem de quê, não tem de quê, não tem de quê, não tem de quê, não tem de quê, não tem de quê, não tem de quê", sendo com isso obrigado a reconhecer a minha má educação diante de alunos tão bem educados.

18 dezembro, 2023

E O VENCEDOR É PARMÉNIDES






Que outra resposta esperar desta simpática vitoriana, contemporânea de Napoleão III, nascida muito antes de Freud abanar as consciências europeias, do cinema ser inventado, ou Alexander Bell apresentar o telefone, apenas um pouco depois de Marx ter publicado O Capital, ou de um jovem desconhecido chamado Nietzsche chegar a Basileia para dar aulas? Questiono agora que resposta esperar quando, daqui a 108 anos, o mesmo se perguntar a quem esteja agora a nascer. No último ÍPSILON, António Guerreiro, pegando na actual mania dos balanços e das novidades que, por tudo e por nada, inauguram novas épocas históricas, chama um historiador francês, François Hartog, para referir o facto de à normal categoria de aceleração histórica, certamente experienciada pela anciã inglesa, se sobrepor agora a categoria de aceleração da aceleração, fazendo com que o que mal acaba de nascer se torne logo passado, reduzindo assim a experiência do tempo ao presente. Daí talvez a resposta venha a ser: "Nada". Para quem vive num mundo de voraz mudança e novidade, a mudança e a novidade deixam de existir. É como a ventoinha, cuja velocidade faz parecer que está parada.
 

16 dezembro, 2023

O BARCO DE TESEU

Durante a caminhada, resolvo fazer um desvio pelo João de Deus, que frequentei durante dois anos há quase sessenta, e por onde há muito não passava. Pelos vistos, muito mesmo: o edifício já não existe, estando agora lá outro completamente diferente, acontecendo-me o mesmo que a um londrino que tivesse vivido no século XVI e, ressuscitando agora, desse com o The Gherkin no lugar onde antes esteve a igreja de St. Mary Axe. Paro na rua em frente, que é a mesma, para não observar as longas escadas que subia todos os dias e que já não existem, como também para não observar a entrada principal para o edifício que também já não é o mesmo. No exterior, também não observo o pequeno muro branco que desde sempre existiu, mas um exemplar de arquitectura brutalista. Dou então comigo a pensar: andei ou não andei ali? Há alguma diferença entre o novo edifício e não estar lá nada, apenas um terreno baldio cheio de poças de água? Qual a diferença entre o actual edifício e o mais absoluto vazio? Estar parado naquele lugar, na mesma rua de sempre e vendo até as mesmas casas de sempre, faz-me acreditar que andei ali. Mas o que apenas sempre esteve ali foi um espaço enquanto forma pura, uma abstracção da qual só temos consciência pelos edifícios que lá estão, o anterior e o actual. E no que agora lá está, nunca entrei, nunca aprendi nada, nunca brinquei, nem fiz de S. José no teatro/presépio de Natal. Uma pessoa pede para depositarem as suas cinzas no seu jardim. Se tal jardim deixar um dia de existir para fazer uma garagem e depositarem as cinzas no jardim do vizinho, apesar da proximidade e da terra ser a mesma, nunca será o mesmo espaço, pois as formas também não, assim como o coração que só ali bateu em vez de bater no jardim do vizinho. Porque nós não vivemos no espaço mas em formas que dão vida e narrativa a esse espaço e, tanto um jardim como um jardim de infância, não são espaços mas formas que enformam as nossas vidas. Daí ter visto aquela não observação como uma traição. Mas também é verdade que dentro de poucos anos, já não haverá ninguém que se sinta traído, ficando ali aquele edifício como se sempre lá tivesse existido.

15 dezembro, 2023

EARWORMS

Não sei se por andar bastante a pé, sou intensamente atacado por earworms, aquelas melodias que penetram na nossa mente e das quais, irritantemente, não nos conseguimos libertar. Os dez minutos a pé que separam a minha casa do meu local de trabalho são, neste aspecto, um tremendo foco de infecção, com uma lista de clássicos que, já sei, irão ficar para toda a vida. Vão da música popular (One of These Days, dos Pink Floyd, Kashmir, dos Led Zeppelin, The Mercy Seat, do Nick Cave, The Glowing Man, dos Swans, Fado Corrido, da Brigada Vítor Jara) à música erudita (O ostinato do 1ºandamento da 7ª Sinfonia, de Shostakovich, leva-me imenas vezes ao desespero, um pequeno excerto, breves segundos apenas, da Abertura do Dido e Eneias, de Purcell, mas que na minha cabeça se repete até à exaustão), passando pelo Jazz (Cheek to Cheek, Salt Peanuts, My Favourite Things, versão John Coltrane, ou o terrível e avassalador Take Five). O meu cérebro é completamente invadido por eles, não me deixando espaço para mais nada, uma espécie de grilhões auditivos que me impedem de atingir outros estados mentais. E não é por acaso: são estes, e não outros, por serem os que já ouvi até à exaustão e que ainda hoje oiço. Felizmente, o mesmo não me acontece com as ideias. Daí estar liberto de qualquer ideologia. Gosto de ter ideias, não de ter uma ideologia ou uma visão global do mundo que anule tudo à sua volta. Uma ideologia é incompatível com a liberdade de pensamento, uma vez que se trata de ideias feitas de pedra, pesadas e difíceis de desfazer, esmagando tudo o que se lhes atravesse no caminho. Pensar, compreender, é pensar e compreender caso a caso, situação a situação, pensar numa coisa e ter depois a liberdade para pensar noutra, fazendo e desfazendo ideias de acordo com as indicações que a realidade nos vai dando. O mundo de ontem, o tal de Stefan Zweig, não é o mesmo de hoje e este também não é o de amanhã. Porque haverão as ideias de ser as mesmas, repetindo-se insistentemente, roubando o espaço para outras? E por que não ter ideias contraditórias quando a própria realidade se mostra contraditória? Uma ideologia, seja ela qual for, é tão irritante como qualquer earworm, independentemente da beleza com que cada um deles se apresente aos nossos ouvidos. As sereias da Odisseia também tinham belas vozes, mas isso não fazia delas figuras recomendáveis, daí a extrema utilidade da cera nos ouvidos, deixando-nos a mente livre para prosseguirmos viagem e pelo caminho mais aconselhável de seguir.

14 dezembro, 2023

ESTAR

Nascendo-se com uma vida para viver, seria normal, para quem não a foi vivendo, chegar a uma certa idade com o terrível peso de não a ter vivido. Alargando o espaço vital de um verso de Manuel António Pina, deveria ser tremendo pensar que a minha vida passou e eu não estava lá. Vale o facto de quase nunca se chegar a ter consciência disso, alimentando-se a pão e água a ideia de a minha vida ter sido a única possível de ter vivido. Como aqueles que não fazem a mais pequena ideia do que existe para lá da serra que os prende à sua amena beatitude. O verbo ser tem um valor bem superior ao do verbo estar. Mas, como muito bem explica o poeta, o que somos, no melhor e no pior, também depende muito da maneira como vamos estando. Depois, fica a diferença entre estar porque se quer ou estar apenas porque ali se foi parar sem ser tido nem achado, partindo depois sem nunca se ter chegado a ter e a achar.

13 dezembro, 2023

BURDA

Tudo o que aprendi nas aulas de História foi sobre tempos onde eu não havia estado. Hoje, porém, estive sentado ao lado de uma colega que corrigia um teste sobre as ditaduras europeias, nomeadamente a salazarista. Tendo eu feito uma escola primária salazarista, lembrando-me do dia em que Salazar caiu da cadeira ou, até porque já mais velho, do general Franco, ou ainda conhecendo bem uma pessoa que é sobrinha-neta de um dos mais próximos ministros de Salazar e com quem teve também uma relação de grande proximidade, logo percebi que também já faço parte de um livro História de 12ºano. Entretanto, vou para a aula e dou com uma aluna com uma camisola muito parecida com uma que a minha mãe fez quando eu tinha a idade da aluna, mas sendo a dela de compra, como vim a saber depois de a elogiar. A minha mãe comprava uma revista alemã chamada Burda da qual tirava ideias para fazer camisolas e casacos para os filhos, mas também as técnicas para as fazer que, para mim, não passavam de uns quadradinhos sem sentido. Quando íamos para a praia alugávamos uma barraca para quinze dias, fazendo mães e filhos amizades entre si, respectivamente. E enquanto nós brincávamos, as mães tricotavam casacos e camisolas, partilhando Burdas e outras revistas do género. Daqui a cem anos poder-se-á continuar a estudar o salazarismo e tudo o que é óbvio na história política, económica e institucional. Mas em que parte dela se irá estudar as mães, domésticas, que compravam uma revista chamada Burda e que tricotavam camisolas e casacos enquanto os filhos iam para a escola ou brincavam na areia nos intermináveis dias de Verão? A história feita para os alunos estudarem, dá-nos factos congelados nos manuais. Mas grande parte da história é feita de factos que nunca chegam a congelar, que se derretem para sempre à medida que vão derretendo as pessoas que os viveram, nunca chegando por isso a aparecer nos manuais. Podemos fazer parte de um manual de História, mas o manual de História nunca terá partes de nós, de pessoas reais, que tricotaram e brincaram, e não apenas nomes que se estudam, meras abstracções com o mesmo significado das que se estudam em Física ou Química. 

12 dezembro, 2023

O MARTELO COM MESTRE

Sento-me no táxi e, ao contrário do habitual, o taxista, ainda jovem, continua calado. Pouco depois, sentindo o peso do silêncio entre duas pessoas no reduzido espaço de um carro, resolvo elogiar o sistema de som, que exacerbava com fortes graves a batida que vinha a ouvir. Percebo que ficou contente, fazendo então vir ao de cima o verdadeiro taxista que eu esperava encontrar ao entrar no táxi. Juro que foi mesmo assim: eu falo do sistema de som e ele, nem cinco minutos depois, já tinha conseguido dar a volta à conversa para poder dizer que os africanos têm um cheiro a suor próprio, não sabendo, porém, se é mesmo da raça ou por não tomarem banho. Associação cujo radical determinismo não deixa de ser extraordinário. O banco do condutor de um táxi é o oposto do divã de um psicanalista. Enquanto este serve para uma pessoa explorar as profundezas da mente, o banco do condutor serve para confirmar a superfície da mente de quem o conduz, a qual deverá coincidir com o que também há de mais profundo. Como dizia o outro, para quem só tem um martelo como utensílio todos os problemas estão reduzidos a pregos.

07 dezembro, 2023

A COISA EM SI

Jon Fosse deu uma entrevista ao El País, na qual compara a sua escrita a uma composição musical. Como um compositor, destaca o ritmo, as repetições, as variações, formalismos que explicam por que algumas pessoas sintam ao lê-lo o mesmo tipo de dificuldade diante de música que não entendem. Li isto e pensei no meu gato. Tenho uma mesa baixinha preenchida com livros de pintura e fotografia e, vá-se lá saber porquê, foi um livro de Bill Brandt que escolheu para os seus momentos de ociosa meditação. Esse e apenas esse, desprezando todos os outros, apesar dos equivalentes tamanhos e texturas das capas. O que vê ele naquele livro que não veja nos outros? Um cheiro? Uma subtil textura, imperceptível para a minha mão? Por muito que me esforce, não consigo compreender. Uma coisa sei: também ele não percebe o que vejo nele e o que me pode interessar quando o abro. Por muito que olhe para a capa e cheire com rigor felino, nunca saberá o que é um livro de fotografia, nem sequer o que é uma fotografia. O que separa seres humanos uns dos outros pode não ser muito diferente do que separa o ser humano do animal. 

06 dezembro, 2023

ICAR

Não falha. Quando pergunto aos meus alunos (os que se consideram religiosos) se se vêem primeiro como cristãos ou católicos, a resposta é sempre a mesma: católicos. O que não surpreende se pensarmos no que diz Antero na sua célebre conferência Causas da Decadência dos Povos Peninsulares: "O cristianismo é sobretudo um sentimento. O catolicismo é sobretudo uma instituição". Ora, se pensarmos no modo como os nossos jovens vivem institucionalizados desde que nascem, a creche, o J.I., a escola, o ATL, a catequese, as actividades desportivas, os campos de férias, o Inglês, a música, as explicações, os escuteiros, parece-me haver razão suficiente para o facto de sentirem mais o peso de uma instituição do que o de uma verdadeira religião. Tal como com o ISLA, o ISPA ou IST, o I de igreja poderia ser de Instituto, passando assim a chamar-me Instituto Católico Apostólico Romano. Fica naturalmente de fora o pertinentíssimo O que bem poderia acrescentar-se no final para sugerir como, ao contrário das verdadeiramente cristãs, falta às asas católicas robustez para levarem as almas até ao Reino do Céus.

05 dezembro, 2023

VANITAS


Ao contrário da construção e derrocada de uma casa, a construção e derrocada dos sentimentos não são observáveis. Mas, como as casas, também estes se podem transformar em ruínas ou escombros. Os quais, ainda como as casas, depois removidos, deixam um espaço vazio ou dão lugar a um outro que vai apagando a memória do anterior. Esta declaração de amor está ali há anos. Onde andarão agora a Nádia e o seu adorador? Quantas outras não Nádias já ele adorou, e por quantos outros já foi a Nádia adorada? Nada melhor do que uma casa em ruínas para fixar no tempo uma declaração de amor. Declaração e casa que, talvez ao contrário da Nádia e seu adorador, foram feitas uma para a outra, isto, claro, até ao dia em que ambas irão desaparecer, desaparecendo também assim a memória dessa perfeita ligação entre uma casa em ruínas e uma fresca e jubilosa declaração de amor.

01 dezembro, 2023

PRAZOS DE VALIDADE

Comi ontem um iogurte quinze dias para lá do prazo de validade, fazendo também uma omelete com ovos que, apresentando o dia treze, me fez esticar ainda mais a corda. Não notei qualquer alteração nos respectivos sabores e, no que ao meu organismo diz respeito, não houve manifestações de protesto. Tudo passou e com bom proveito. Fiz precisamente o contrário do que andamos todos a fazer nas nossas vidas às quais impomos prazos de validade tão absurdos como os dos iogurtes ou os dos ovos. Depois, sem darmos por isso, ficamos ainda mais cativos nas mãos de Cronos, que é um deus poderoso e implacável. E isso paga-se caro. Tanto literalmente como existencialmente.

30 novembro, 2023

O CAMINHO

Aos olhos de quem é de esquerda, serei visto como sendo alguém de direita, e de esquerda aos olhos de quem é de direita. Na verdade, nunca sei bem qual o caminho a seguir, o que talvez possa significar que estarei no caminho certo.

26 novembro, 2023

SORTE

Passeava na avenida. Vejo um velhote a dar comida aos patos e, como o cão de Pavlov, penso: "Tive muita sorte".

23 novembro, 2023

FLORAL

Torres Novas, 2023

Sem qualquer desconsideração pelas restantes, apenas uma destas terapias me faria sair de casa para a ela recorrer. Por sorte, é mesmo a única para a qual não precisarei de o fazer. Basta ligar a aparelhagem, sentar-me no sofá, e deixar levar-me pelos luminosos efeitos do cravo bem temperado.

15 novembro, 2023

MUNDO DE PAPEL

Há livros que resisto a abandonar quando acabo de os ler, impedindo-os de regressar logo para a estante. Não com medo de ficarem longe do coração por ficarem longe da vista, mas porque tendo gostado tanto deles preciso de os ter também ali à mão de semear, sendo aqueles cujas sementes, ao contrário das da dialéctica hegeliana, não são negadas nem pela flor, nem pelo fruto. Livros que nunca estarão lidos, não no sentido de não terem sido completamente compreendidos, mas em que pedem para ser relidos, como uma comida que se repete, já não para saciar a fome, mas só pelo prazer que nos dá. Já os li e conheço-os, mas conhecimento que em vez de enfraquecer o desejo de voltar a pegar neles, aumenta-o ainda mais, como uma música que nunca nos cansamos de ouvir. Daí ter a mesa de cabeceira e a pequenina da sala em frente ao sofá de leitura, com vários livros que ainda não tive a coragem de abandonar, alguns deles há bastante tempo. Não que os leia todos os dias, mas estão ali e gosto de os ter ali, de passar por eles, vê-los e saber que estão ali. Num ínfimo ponto do espaço e do tempo infinitos, existe um mundo possível no qual a minha biblioteca é formada por várias salas repletas de livros, do chão até ao tecto, como na livraria Bardón, em Madrid. Mas também com uma grande mesa de cabeceira, feita relicário de madeira, onde se formariam duas ou três torres de livros, verticalmente dispostos por cores como, circularmente, as flores de Josefa de Óbidos. Não aqueceriam os pés nas noites frias de Inverno, mas, felizmente, não faltam estratégias para o fazer. Já o calor irradiado por esses livros só deles poderá vir. A biblioteca, nunca irei ter, pois o infinito é demasiado grande para o infimíssimo ponto que eu sou e para as minhas limitadas possibilidades. Quanto à mesa de cabeceira com os seus tijolos de papel, talvez venha a tornar-se realidade, ajudando a dilatar um pouco mais o infimíssimo ponto que sou antes que se transforme, de vez, num ponto final sem parágrafo, ao contrário do que agora se diz por tudo e por nada.

09 novembro, 2023

ALMAS PENADAS

Quando comecei a dar aulas era pouco mais velho que os meus alunos, um jovem entre jovens. Hoje, eles continuam a ter a mesma idade e eu sou um sexagenário. Contudo, e algo paradoxalmente, hoje sinto-me mais próximo deles, vendo-os mais reais do que os meus primeiros alunos. Comecei a dar aulas na escola onde quase sempre estudei. Saí dela para a faculdade e, passado algum tempo, a ela regressei. Continuava a ser a mesma escola, as mesmas salas de aula, corredores, bar, espaços de recreio, ginásio, assim como o caminho de casa para lá. Porém, os alunos eram outros e não os que tinha lá deixado pouco antes. Olhava para eles e não reconhecia ninguém, como num sonho, neste caso um pesadelo, em que alguém regressa a casa e vai dar com uma outra família em vez dos pais e irmãos. Mas também eu não era o mesmo. Ao entrar na sala de aula, em vez de me sentar ao lado dos outros, subia o estrado para escrever o sumário na secretária e fazer a chamada de alunos que nunca tinha visto. No intervalo, em vez de ir para os espaços de recreio, ia para a sala de professores, onde passei a tratar por tu os que foram meus, que antes olhava com respeito ou até veneração e agora como pares. E ao passar pelos funcionários, estes, em vez de olharem para mais um aluno, diziam bom dia senhor professor. Mas não só. Antes de partir, eu era igual a eles, vivera e sabia mais ou menos o mesmo que eles. E agora não, tinha ido à faculdade e sabia muito mais que eles, estando ali, não para conviver com eles, procurar namorada entre eles, jogar com eles, mas para lhes ensinar o que eu já sabia e eles ainda não. Porém, a minha fresca memória dos anos recentes continuava a pressentir os que já lá não estavam, ou a parte de mim que também já lá não estava. Todos, eles e eu, almas penadas que teimavam em não abandonar o seu espaço vital. Entretanto, há muito que as antigas e jovens almas penadas, tantos as deles, como a minha, partiram, definitivamente, para o seu mundo. Daí que hoje, e como o Deus do Antigo Testamento, eu seja apenas aquele que sou e os alunos aqueles que são. Sem equívocos, sem ambiguidades, sem farrapos de memória a obnubilar a percepção da realidade diante dos olhos. Recebendo todos os anos alunos novos, já os conheço de ginjeira ainda antes de os ver, para sempre libertos de almas penadas a pairar à sua volta, mas que só eu conseguia ver. Como eu me libertei há muito da minha que penava mas já não pena, embora com uma outra que pena mas que nunca chegará a ser penada.

08 novembro, 2023

OFF

Pouco antes de morrer, Jan Palach afirmou que não queria ficar alienado do mundo, daí a sua revolta. Tenho todo o respeito pela figura e memória de Jan Palach. Mas afasta-me dele a minha frustração por ainda não ter conseguido ficar alienado do mundo tanto quanto gostaria.

07 novembro, 2023

TRANSTEMPORALIDADE

Há insectos cujo ciclo de vida é de 24 ou 48 horas. Já as tartarugas gigantes das ilhas Galápagos vivem mais de 150 anos e os elefantes 100 anos. Nós, em média, morremos entre os 70 e 80 anos. O que significa viver 70 ou 80 anos? É muito ou pouco tempo? Não vivemos tanto como a tartaruga gigante ou o elefante mas, comparando com as vidas da maioria dos seres vivos, é uma vida longa. Talvez isto possa significar que não podemos viver a nossa vida como um insecto sempre a esvoaçar, ou como um rato que, nos seus dois anos de vida, não pode estar muito tempo parado. Mas um ser vivo que vive 70 ou 80 anos, não precisa, nem pode, estar sempre em movimento. Daí devermos tomar como exemplo a tartaruga ou o elefante, embora também sem exagerar pois não vivemos tanto como eles. Uma vida humana, pela sua duração, precisa de pausas, de momentos mortos, de silêncios. A vida humana, com os seus 70 ou 80 anos, não é uma vida de acção, mas uma vida com acções, coisa diferente de viver como um frenético insecto cuja vida rapidamente se esvai. Vivê-la assim fica assim como imaginar a cabeça de uma tartaruga num corpo de insecto. Há pessoas transsexuais que sentem que nasceram com o sexo errado. Neste caso, trata-se de transtemporalidade: a cabeça viver sob o ritmo imposto por um relógio e calendário que nada tem que ver com o que a natureza lhe preparou, mesmo quando a esperança de vida era bem menor que a actual.

06 novembro, 2023

VERO A VERONA

Verona, 2022

Muitos se lembrarão da assustadora mitologia urbana gerada à volta do filme O Exorcista, nos anos 70 do século passado. Uma das coisas que se ouviam aqui na terra era que, lá em Lisboa, à porta do cinema, estava sempre uma ambulância para levar as pessoas que desmaiavam ou se sentiam mal a ver o filme. Presumo que nunca houve qualquer ambulância mas, como diria um italiano, se non è vero, è ben trovato. O que já tem tanto de vero como de ben trovato, é o olho para o negócio do dr. Giulliano Zenari, cardiologista, por montar o seu consultório mesmo por cima do dr. Eugenio Maccagnani, tal como outros abrem agências funerárias em frente a hospitais ou farmácias por baixo de clínicas médicas. Vendo o modo como os portugueses vivem permanentemente aterrorizados com o peso dos impostos nas suas vidas, estranha-se o facto de a luminosa ideia do cardiologista de Verona ainda não ter chegado a Portugal. 

03 novembro, 2023

JANELA

Um montão de roupa para passar a ferro, o mesmo é dizer também um montão de tempo para ouvir música. Com a sofisticação intelectual que lhes é reconhecida, têm toda a razão os gurus da auto-ajuda quando dizem que por cada porta que se fecha há sempre uma janela que se abre.

02 novembro, 2023

SENTADOS E CALADOS

No caderno de actividades do manual  de Psicologia B surge o seguinte exercício: 

Considera o documento e responde à questão.

O cérebro é mais do que uma combinação de módulos autónomos, cada um deles decisivo no que se refere a uma função mental específica. Cada uma das áreas funcionalmente especializadas interage necessariamente com dúzias ou centenas de outras, criando a sua integração, no total, qualquer coisa como uma grande orquestra complexa com milhares de instrumentos – uma orquestra que se dirige a si própria, com um repertório e uma partitura que mudam constantemente. Oliver Sacks (2010), O Olhar da Mente, Relógio d’Água, p. 107

1.1. Concordas com a posição defendida pelo autor? Justifica.

Quer dizer, um homem faz o curso de Medicina, depois uma especialização em Neurologia, torna-se, para além de médico, professor numa das melhores universidades do mundo e com extensa obra publicada, para depois um texto seu vir parar às mãos de um fedelho de 18 anos (para ser tratado por tu só pode ser um fedelho), a quem é perguntado se concorda com ele, ou melhor, com a posição por ele defendida, como se estivesse a discorrer sobre o conflito israelo-palestiniano ou a existência de touradas. É como perguntar se concorda com as leis da Termodinâmica, ou solicitar uma análise crítica do Teorema de Pitágoras. O que faz todo o sentido num tempo em que tudo se reduz a opinião, e acessível ao mais comum dos mortais. Lembro-me de estar a dar a primeira aula sobre Kant e logo começar a ver erguerem-se braços ligados a cérebros que ouviam o assunto pela primeira vez, para das suas circunvoluções pré-frontais de imediato saírem contundentíssimas críticas a um homem que está para a Filosofia como Newton para a Física. Que assim seja, se assim são os tempos. Mas fosse eu a mandar e todos os alunos, excepto para esclarecimento de dúvidas, estariam proibidos de abrir a boca nas aulas. Só no 12ºano poderiam então balbuciar umas coisas como preparação para a universidade. E fosse eu a fazer os programas de língua portuguesa entre o 1º e o 11ºano, as aulas, para além da gramática, seriam todas passadas a fazer cópias de textos de Eça de Queiroz, e a haver trabalhos de casa, para além de mais exercícios gramaticais, seriam igualmente cópias de textos de Eça de Queiroz.  Ouvir, ler e copiar, ouvir, ler e copiar, ouvir, ler e copiar, fosse assim e teríamos à entrada na universidade alunos a pensarem, escreverem e falarem melhor, e com um pensamento bem mais crítico e consistente do que o cultivado, para além da escola, na qual estão cada vez mais em regime de auto-aprendizagem, nessas encarrascadas tabernas do mundo actual que são as redes sociais.

01 novembro, 2023

ÁRVORES

Uma árvore para ali está, quieta, serena, sossegada, apenas abanando ramos e folhas para deleite dos nossos ouvidos. Ali está, pois, alimentando-se de terra e água, para embelezar a paisagem, limpar a atmosfera, oferecer frutos cheios de vitaminas, ser poiso de aves, dar sombra a quem dela precisa ou um ramo para as crianças baloiçarem. E, no fim, ainda poder transformar-se em lenha para aquecer ou produzir energia. E tudo isso sem disso ter consciência. Pobre dela se a tivesse, forçando-a a saber o que é, mas também o que não é, mas poderia ser, apoquentada por desejos e apetites dos quais é refém. A natureza consegue por vezes ser mesmo perfeita, libertando algumas das suas criaturas da possibilidade de serem infelizes. Adão e Eva foram expulsos do paraíso, mas as árvores, que não podem comer frutos, apenas oferecê-los, por lá continuam. 

31 outubro, 2023

HISTÓRIA E GEOGRAFIA

Acabo de escrever "Fiz Filosofia Medieval há 40 anos", e sinto uma espécie de abalo. Quando uma pessoa diz que fez alguma coisa há 40 anos, isso há-de ter um grande significado: estar velha. Não só pelo tempo mas também pelo que fiz, pois se dissesse "Entrei para o João de Deus há quase 60 anos", não teria o mesmo significado, uma vez que na  idade em que tal aconteceu ainda não era bem o eu que sou agora, mas uma pré-história deste meu eu. Pelo contrário, o meu eu de agora reconhece-se perfeitamente no eu que fez Filosofia Medieval, olhando para ele como se tivesse sido há pouco, apesar dos 40 anos. E é isso que impressiona, ter sido há muito e parecer que foi anteontem. Uma pessoa distrai-se um bocado e, zás, lá se foram 40 anos. O que aconteceria então se, como as personagens do Antigo Testamento, ou como Orlando, vivêssemos centenas de anos como agora vivemos décadas? Provavelmente iria acontecer com as centenas o que agora me aconteceu com as dezenas que me separam das aulas da Filosofia Medieval. "O quê? D. João VI morreu há quase 200 anos, caramba, como o tempo passa! E há mais de 500 que chegámos ao Brasil? Parece que foi ontem!". Fosse assim e olharíamos de outra maneira, digamos que menos estatística, para o 1/3 da população europeia que morreu na Idade Média devido à peste negra. Como também seria diferente a percepção do terreno onde ocorreu a batalha de Aljubarrota, Austerlitz, Estalinegrado ou o mar de Lepanto ou Trafalgar, grandes e trágicos acontecimentos que, como diz Kundera em A Insustentável Leveza do Ser,  são hoje vistos com uma enorme leveza num manual de História. Mas como não é assim, todas essas acontecimentos acabam por se tornar uma espécie de pré da pré-história das nossas vidas de décadas, de um tempo fora do nosso tempo, como o meu tempo de João de Deus face ao que sou hoje. Mas o que é válido para a história, com a sua pré-história, também é válido para o espaço: quanto mais longe está um acontecimento de nós, mais irrelevante, uma espécie de pré-geografia, face à geografia na qual vivemos as nossas vidas ao longo de décadas, transformando assim tudo numa enorme e bem sustentável leveza.

30 outubro, 2023

AMOR E CONHECIMENTO


Michelangelo Antonioni, O Eclipse

Fiz Filosofia Medieval há 40 anos, daí já não ter a certeza se é no De Trinitate, livro que não tenho para o confirmar, que Santo Agostinho diz que quanto mais ama Deus, mais o conhece e que quanto mais o conhece, mais o ama. Na altura isso pareceu-me normal, e, tratando-se de Deus, ainda hoje me parece. Porque, ou Deus não existe, ou, se existe, nunca se viu, sendo muito fácil amar e conhecer o que não existe ou nunca se viu, fluindo livremente o amor e o conhecimento como um rio sem margens para o comprimir. Bem diferente do que está diante dos nossos olhos, em que amor e conhecimento lutam entre si, e em que quanto mais se ama, menos se conhece, e quanto mais se conhece, menos se ama. Não se trata de um imperativo ou de um conselho, não estou a dizer que amor e conhecimento devem lutar entre si, apenas que lutam entre si. Trata-se do domínio do ser e não do dever ser. O que diz aqui a personagem feminina soa a paradoxo, mas não é. Porque o amor tem a sua própria sabedoria, que não é a do conhecimento, como a do conhecimento não é a do amor. Duas linhas paralelas que seguem lado a lado sem se tocar, mas que, tocando-se, pode gerar um curto-circuito do qual ambas saem queimadas.

29 outubro, 2023

DELICADEZA


Admito que possa haver qualquer coisa de psicanalítico na minha relação com o tema da Anunciação. Se trabalhasse num grande museu e pudesse escolher a curadoria de uma exposição de nível mundial, seria um fortíssimo candidato. O tema é sempre o mesmo, mas díspares as suas versões. Veronese dá-lhe uma emoção quase cinematográfica, que não trai o dramatismo da situação expresso por Lucas no seu evangelho. Na de Fra Angelico vemos o anjo, pedagógico, explicar a Maria o seu divino desígnio, percebendo-se a sua perplexidade e esforço para compreender o que se passa. Leonardo oferece-nos uma Maria intelectualizada, parecendo igualar o estatuto superior do anjo. Botticelli esteve bem próximo de pintar um elegante bailado entre uma mulher e um anjo. O ano passado, descobri uma grande Anunciação de Paris Bardon numa temporária a si dedicada, ficando ali preso e com dificuldade em virar as costas àquele tempestuoso e barroco onirismo que me deixou o cérebro baralhado e a lutar contra a absurda ideia de se tratar de um pesadelo. Precisamente o oposto desta versão de Perugino, com os seus dois tipos de delicadeza que nos parece confrontar com o suave e evanescente sonho de um sonho. A natural delicadeza da situação com que Maria é confrontada, que, como lemos em Lucas, a deixa embaraçada, como se a língua de Maria fosse o Espanhol actual. Mas delicadeza essa que, para além da delicadeza das cores e da luz, levou o pintor a exacerbar a silenciosa delicadeza de todos os seus protagonistas: a delicadeza com que Maria movimenta o seu corpo, alinhando ambas as mãos com o seu pé direito. A delicadeza do anjo que nada diz, apenas apontando para o lírio. A delicadeza do pai que apenas envia a pomba, que plana na direcção de Maria de modo a que nem o bater das suas asas perturbe o silêncio da cena, diante de uma paisagem amena onde nem a mais ligeira brisa se ousa vislumbrar. 

28 outubro, 2023

BIOPOLÍTICA

Torres Novas, 2023

Porto, 2023


Ao ver a primeira placa, ainda pensei que estivesse ali por engano ou esquecimento, mas não deixando de registar o lado cómico da situação. Porém, voltando a encontrá-la, dias depois, numa rua do Porto, apercebi-me que, afinal, é mais para dramatizar do que para rir. No Público de ontem, António Guerreiro lembrava o zeloso paternalismo da Protecção Civil no que à meteorologia diz respeito. O qual, pelos vistos, é bem mais tentacular do que podemos supor. Neste caso, chega a ser comovente a preocupação com a possibilidade de os transeuntes poderem chocar contra a parede, ficando ali parados, com a testa encostada, sem saber qual o caminho a seguir, tendo muito provavelmente que ligar o telemóvel para consultar o GPS.

27 outubro, 2023

IN MEMORIAM [1932-1963]



Lyon, 2023
 

Contrariamente aos portugueses, que apreciam respeitar a pureza original, os franceses têm por hábito afrancesar os nomes estrangeiros. Não há nenhum mal nisso, mas também não precisam de exagerar.

26 outubro, 2023

NENÚFARES

Gosto, e até bastante, de algumas coisas de Monet, mas é sempre com uma certa indiferença que olho para a sua série de nenúfares, aqueles monótonos e impassíveis ornamentos botânicos repousados em águas paradas. Enfim, uma pasmaceira sem qualquer abertura para uma narrativa. Mas se pensar que alguns deles foram pintados enquanto decorria nos verdes campos da Europa uma das mais demenciais e tremendas carnificinas de todos os tempos, sou obrigado a repensar o valor desses trabalhos de um homem entregue à sua solidão num jardim, enquanto vai misturando cores numa tela, sob o chilreio dos pássaros. Se me vier à cabeça um inocente com as tripas de fora num lamaçal, ou nos pulmões queimados de milhares de jovens numa trincheira de Verdun, um colorido nenúfar repousado sobre águas tranquilas surge-me então aos olhos como um paraíso perdido que nunca deveríamos ter abandonado.

24 outubro, 2023

BELEZA

«A beleza dela deixou-o deserto» Pascal Quignard, Terraço em Roma

É uma mulher, mas poderia ser uma pintura, uma música, uma paisagem, um verso. O que aqui importa não é ser uma mulher, mas o deserto que sobressai diante da beleza, que não significa anular a consciência. A beleza não é uma terrível Medusa que paralisa a consciência no seu próprio vazio. E também para que serviria a beleza sem a consciência dela? Não é isso. Uma consciência deserta significa antes uma ausência da consciência de si, de uma consciência que faz de si própria o centro de tudo e torna a realidade uma sombra de si mesmo. A beleza é por isso catártica, não só pela emoção, mas também por libertar a consciência agrilhoada no seu próprio espectáculo, descentrando-a como Copérnico fez com a Terra, com olhos e ouvidos apenas para se concentrar na fonte que irradia beleza. Diante da beleza, deixamos de ser rochas empedernidas e bloqueadas pelo seu próprio peso. Somos antes como um recipiente vazio que vai ser preenchido por ela. A beleza, e a tese não é minha, é por isso o melhor antídoto para o egocentrismo e o narcisismo. Pascal Quignard diz o mesmo que o filósofo, mas com aquela luz e fulgor que só existe na literatura ou naquelas raras vezes em que a filosofia gosta de piscar o olho à literatura.

23 outubro, 2023

FACHADAS

A pequena fachada do palácio dos Salinas, dando para a praça, em Donnafugata, ilude a sua grandeza, não deixando adivinhar os duzentos metros que se estendem ao longo das traseiras e pelos quais, um dia, deambularam Tancredo e Angélica em absoluto estado de graça numa espécie de Éden barroco e palaciano feito de luz e penumbra. O mesmo Tancredo que dizia que palácio do qual se conheçam todas as dependências não é digno de ser habitado. Precisamente o contrário do palazzo Poli, em Roma, cuja simplicidade, que talvez o torne pouco digno de ser habitado, choca com a sumptuosa fachada aberta sobre o beco pejado de turistas fazendo selfies para o Instagram. Seria interessante assistir a um alegórico diálogo entre estes dois palácios, na mesma linha do apólogo "Relógios Falantes", de D. Francisco Manuel de Melo, uma animada e ilustradora conversa entre um relógio de cidade e um relógio de aldeia, para perceber que, apesar de muito ter mudado desde a desconcertada e aristocrática corte lisboeta do século XVII, ao fim e ao cabo, talvez vá ficando tudo na mesma.

22 outubro, 2023

BREAKFAST IN AMERICA

 

Torres Novas, Outubro 2023

Breakfast à portuguesa? Houve um tempo em que se chamava pequeno-almoço. Talvez os ciprestes sirvam para lhe prestar homenagem.

21 outubro, 2023

OUTONO

Não há como não compreender a sua tristeza, ou não sentir mesmo compaixão por Deméter, após o rapto da sua filha Perséfone. Mas também não há como não ficar eternamente agradecido ao terrível Hades pelo hediondo acto que nos haveria de trazer eternamente o Outono, que volta sempre, mesmo quando nos deixa desesperados porque tarda em chegar.

16 outubro, 2023

HARD WARE

Só um bocado depois de dizer "O meu cérebro sabe coisas que eu não sei" tive a consciência de ter matado o pai, cuja obra maior foi publicada em 1899, mas apresentando 1900 como data, início de uma nova era. Mas isso foi há mais de cem anos e eu digo que o meu cérebro sabe coisas que eu não sei, em vez de dizer que o Id, essa coisa a que chamamos inconsciente, sabe coisas que eu não sei. Eis-me agora tão moderno neste meu ano como Freud o foi no seu. E em vez de um sótão repleto de vestígios arqueológicos da mitologia pessoal de cada um e que, como em Xanadu, repousam lá perdidos e ignorados, passei a ter umas circunvoluções que podem ser axialmente tomografadas por um computador, as quais, como as placas deste computador pelo metal envolvente, estão protegidas por uma caixa craniana, também para proteger as coisas que elas sabem e eu não sei. Agora que a I.A. está na ordem do dia, talvez nos venhamos mesmo a tornar mais filhos de Mary do que de Percy Shelley ou Byron, quando, em 1816, perto de Genebra, cada um escreveu a sua história durante aqueles dias de mau tempo, ainda bem longe de 1900 e da modernidade que iria chegar com ele. 

15 outubro, 2023

ROMÃS

Não tenho vícios que me invoquem fraquezas da alma ou do corpo, mas deixo-me levar por suaves e até agradáveis quedas, algumas delas pautadas pelo ritmo das estações do ano. Por ora, são as romãs e os dióspiros, cuja força de gravidade me faz descer ao mercado. Entretanto, calhando ontem atravessar uma daquelas antigas ruas pouco habitadas e frequentadas, onde o tempo parou, e na qual eu há muito também não passava, fui dar com uma enorme romãzeira, repleta de portentosas romãs, algumas abertas, exibindo orgulhosas o seu rutilante vermelho. Tratando-se de um terreno abandonado, logo adivinhei o seu breve apodrecimento no chão, homenageadas apenas por mosquitos, em vez de colorirem de Outono uma cozinha e de cujas bagas encherem uma tigela para júbilo de quem as prepararia. E senti pena. Não de mim mesmo por não poder comê-las, até porque romãs não me faltam, mas das próprias romãs por não poderem ser comidas. Por terem nascido, medrado, tornarem-se belas e cheias de sumo, para acabarem apodrecidas num chão que não as merece. Como uma sonata de Schubert cuja pauta tivesse desparecido e nunca viesse a ser ouvida, ou uma tela de Caravaggio que ficasse esquecida entre destroços numa húmida e obscura cave. Infelizes ouvidos, infelizes olhos pelo que perderam, mas também infelizes obras, sem felizes ouvidos e olhos para elas. As romãs não o sabem, mas existem para dar beleza aos olhos, sabor às bocas e vitaminas ao corpo. Não cumprir esse destino é uma tragédia que amputa uma linha antes de terminar num horizonte que glorifica a sua existência. As tragédias não se aplicam apenas a seres humanos, foi isso que ontem percebi ao ver aquelas belas e abertas romãs implorando-me para as levar e eu, derrotado herói, sem nada poder fazer para as salvar.  

14 outubro, 2023

SODOMA E MODORRA

Vejo-me cada vez mais radicalmente moderado, condição bem longe de se confundir com a de ser moderadamente radical, contribuindo não pouco para tal diferença o facto de a primeira, ao contrário da segunda, existir, como se vê pelo meu caso e, felizmente, de tantos outros. Mas o facto de existir não invalida a sua paradoxal condição, pois quanto mais radicalmente moderado se é menos radical se é, ou seja, a condição tanto necessária como suficiente para ser o menos radical passa por ser o mais radical, radicalidade que, de resto, muito me compraz. Comprazimento que talvez se deva à romântica aura associada ao que é radical, de ser Franz em vez de Karl Moor, Jacques em vez de Antoine Thibault, Robespierre em vez de Condorcet, Otelo em vez de Eanes, Vincent em vez de Theo, Gauguin em vez de Sorolla, Maradona em vez de Beckenbauer. Comprazimento esse que, embora ilusório e falacioso por não ser nada disso, ajuda, graças à sua animada e jovial semântica, a não morrer entediado pelo peso de tanta modorrenta moderação.

13 outubro, 2023

NÉON

Anna Karenina? Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é-o à sua maneira. Proust? A madalena, como não poderia deixar de ser. E que fim de vida tão cruel para o Ivan Ilitch, coitado, uma verdadeira lição de vida. O Estrangeiro, esse, sai mesmo em francês: Aujourd'hui maman est morte. E sem esquecer o grande clássico dos clássicos que é aquela ideia de que se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude, despachando-se assim O Leopardo enquanto o leitor esfrega o olho. Nunca foi tão fácil e rápido ler como no século XXI e, graças a isso, atingir um invejável nível de cultura literária para poder brilhar durante o jantar ou no bar às duas da manhã, com um gin tónico na mão e um cigarro na outra.

12 outubro, 2023

TÁXI

É um clássico: entro num táxi, digo o destino, e logo o taxista dá início à sua agreste homilia, tão previsível como uma lei de Newton, como julgo que acontecerá também entre os cabeleireiros e as suas clientes que lá vão para aprimorar o exterior das cabeças, mas sem alienar os interiores. Entretanto, por três vezes, e com a timidez e a insegurança de quem está diante de uma autoridade, resolvi também opinar e dizer de minha justiça. Em todas elas, uma, duas, três, ficou no ar, a partir desse momento, um pesado silêncio, que muito me custa suportar para além do preço da viagem. Consequência disso, passei a não mais opinar, deixando-me de modernices e fazer como na missa propriamente dita: delegar toda a homilia a quem foi incumbido por um poder superior para ilustrar os ignorantes. Verdade seja dita, muito me ajuda o destino nunca estar longe do local da partida e, graças a isso, não precisar de muito tempo para alcançar a salvação, até porque as portas dos Mercedes de estreitas não têm nada, ao contrário da que está no céu, neste caso o propriamente dito, e não aquele feito de alcatrão que piso logo antes de fechar a porta.

09 outubro, 2023

JE SUIS PIERRE MENARD

Arte joga bem com auto-conhecimento e não estou a pensar no de quem a cria, mas no de quem recebe as suas criações. Também não estou a dizer que seja uma espécie de auto-ajuda para viver melhor, ou ainda como aqueles pais que põem os filhos na música porque ouviram dizer que desenvolve a inteligência, ficando assim sobrestimulados para poderem mais tarde entrar nos melhores cursos. Ainda assim, sem ser essa a sua essência, o auto-conhecimento não deixa de ser uma consequência natural e espontânea da arte. Não sei escrever, pintar, esculpir, encenar, realizar, fotografar ou compor. Mas é graças a algumas obras que que me é revelada uma imensa e profunda parte de mim que coincide em absoluto com o que outro escreveu, pintou, esculpiu, encenou, realizou, fotografou ou compôs. Por exemplo, um livro que não apenas descubro, mas onde me descubro. Seja-o como um todo, ou apenas um parágrafo, ou simples frase. Leio e percebo logo que fui eu quem o escreveu, graças ao escritor que fez com que eu escrevesse o que nunca teria escrito se não o tivesse lido. Tal como o escravo de Ménon diante de Sócrates, eis-me humilde diante do criador, parteiro que faz nascer novos mundos e experiências dentro de mim, tornando cada frase que leio uma frase escrita por mim, vindo assim ao mesmo tempo de fora e de dentro. E se eu não sou a mesma pessoa que começou por escrevê-lo, nem o meu mundo é o dela, o meu livro torna-se assim tão original como o próprio original, assim como a pintura do século XIX que eu também pintei ou a música do século XVIII que eu também compus, tão minhas como as delas foram tão suas. Não direi que com vantagem para mim enquanto anão que salta para as cavalitas do gigante para ver mais do que ele. Não se trata de ver melhor uma mesma realidade, mas a realidade de cada um diante do espelho que a cada um pertence.

21 setembro, 2023

ESPECTROS

A rua onde eu trabalho chama-se Francisco Sá Carneiro. Talvez pelo facto de estar tão habituado a ela como rua onde trabalho e onde diariamente passo mesmo sem trabalhar, nunca pensei nela associada à pessoa do nome. Mas olho por mero acaso para a parte superior do edifício e leio as garrafais letras "Aeroporto Francisco Sá Carneiro", e o que me vem à cabeça não é um simples nome de aeroporto. Como numa sessão de espiritismo, sou visitado pelo rosto e a voz de alguém, amado por uns e odiado por outros, que via diariamente no telejornal e enchia as ruas através de cartazes eleitorais, de alguém cujo velório e funeral, num tempo em que ainda não havia canais de notícias, teve uma transmissão ininterrupta durante dois dias. E que eu, apesar de nunca ter sido do seu partido, fui ver discursar aqui na terra, num enorme cinema a abarrotar só para o ver e ouvir. Enfim, uma pessoa quase familiar. Mas o que verá um jovem diante do nome "Francisco Sá Carneiro", seja num aeroporto, rua ou praça? Há-de ser o mesmo que vê quando passa na rua Almirante Reis, Elias Garcia, Luciano Cordeiro, Serpa Pinto, Magalhães Lima, Costa Cabral ou no Saldanha. Ou seja: nada. Simples nomes, tão cheios de significado como os indicativos números das ruas de Espinho ou Manhattan, tão impessoais como o "+351" de Portugal ou o "+49" da Alemanha. E de repente percebi o que sentiria um contemporâneo do Almirante Reis ou de Fernandes Tomás se agora ressuscitasse e se apercebesse da ignorância a respeito dessas figuras outrora tão reais. Sentir-se-ia um espectro entre vivos, o mesmo que eu senti diante de toda aquela gente que também por mero caso olhou para aquele nome que ali está para identificar o aeroporto aonde chegam e de onde partem.

20 setembro, 2023

ALMAS

Lembro-me bem de aparecer essa maravilha da sofisticação tecnológica que foi o CD, trazendo leveza aos discos e sem os ruídos do corpo do anterior vinil. Como me lembro do não menos sofisticado DVD, também livre do peso e da degradação visual e sonora da cassete de vídeo. Lembro-me disto numa FNAC onde o DVD já desapareceu por completo, enquanto alguns CD de música clássica e de Jazz vão resistindo nas prateleiras como cabelos perdidos na brancura da banheira após o duche. Claro que não é o fim da música nem do cinema, apenas a morte física da música ou do cinema, tornadas almas puras, sem o corpo e a roupa que despíamos para as ouvir e ver, e de novo vestir para regressarem à prateleira. Filmes e músicas que se tornaram imateriais como anjos, esvoaçando levemente pelo sobrenatural e etéreo espaço do Spotify e do streaming sem lhes tocar e sentir como nossos. Há qualquer coisa de monástico, ou de mais platónico do que aristotélico, neste despojado universo no qual as música e os filmes passam levemente por nós, deixando-nos as mãos silenciosas diante da ausência do seu corpo antes e depois de os vermos e ouvirmos. Há um texto de Platão, Górgias, em cujo final é apresentado um mito no qual se fala da decisão de Zeus de que as almas sejam julgadas depois de mortas, sem corpo, roupas e ornamentos que possam dissimular a sua verdadeira natureza. Talvez a tecnologia que desmaterializa cada vez mais o mundo, e concretamente o computador que concentra toda a realidade no seu espaço virtual, desde o cinema à música, passando pela fotografia, a pintura, o livro, o jornal, o calendário, a epistolografia ou a ida ao café depois de jantar, se inscreva na matriz cristã que está na origem da nossa cultura, tornando-nos cada vez mais almas nuas no exíguo espaço da nua cela. Platonismo para o povo, chamou-lhe Nietzsche, que gostava de Itália e da montanha suíça para encher o corpo de realidade.

19 setembro, 2023

OUVINTES E LOCUTORES

Há muitos anos, uma pessoa que foi a minha casa, reparando na quantidade de cd's na estante (elevada segundo o seu padrão, e o mesmo acontecendo com outros em relação aos livros, o que me deixa sempre desconsolado e triste), referiu que não tinha o hábito de os comprar, mas que gostava muito de música, simplesmente deixando os seus critérios de audição nas mãos dos locutores de rádio, rádio que ouvia no carro, em casa e durante o trabalho, provando assim gostar mesmo muito de a ouvir. Foi das coisas mais assustadoras que ouvi em toda a minha vida, contribuindo ainda mais para isso o argumento apresentado: se eles, os locutores, são especialistas em música, se percebem de música como mais ninguém, então, ouvir a que criteriosamente seleccionam para nós significa ouvir a música que se deve ouvir. Tão assustador que, tantos anos depois, não pude esquecer, ressoando ainda a metáfora das mãos quase transformada numa catacrese, uma metáfora que deixa de o ser por se tornar a comum (ou mesmo única) maneira de designar uma coisa. E, tantos depois, ainda sinto um arrepio na alma só de pensar nisto.

14 setembro, 2023

MOLDURAS

Há já algum tempo que passei a dar importância e atenção  às molduras e passe-partouts, sobretudo de quadros vindos de colecções particulares para exposições temporárias. Sei com rigor o momento em que começou: uma exposição de Ferdinand Knopff. O que faz sentido, por ser talvez o pintor, e não, ao contrário do que se possa pensar, Gustave Moreau, que detesto, e a cujo museu nunca fui para não me irritar, que mais me sugere a peculiar figura de Des Esseintes. Em exposições de fotografia não há esse esplendor da moldura, quase sempre frias e funcionais, mas os passe-partouts são da maior importância pelo modo como o seu tamanho joga com o da fotografia, sobretudo enormes passe-partouts com fotografias de escala reduzida, dando-lhe assim, algo paradoxalmente, uma evidência bastante maior. Vi recentemente uma exposição na qual Rui Chafes dialoga com a escultura de Alberto Giacometti. A dada altura, havia uma porta que dava acesso a um túnel bastante comprido e escuro, tudo preto, que depois de longamente atravessado iria dar a uma vitrina iluminada para vermos uma peça de poucos centímetros do artista suíço. Genial, pensei. Pode soar ofensivo para uma obra de arte a importância que se dá ao modo como é vestida pela moldura, passe-partout ou dispositivo cenográfico como o de Rui Chafes, parecendo reduzi-la a uma dimensão mais decorativa no momento em que é pendurada na parede de uma sala ou quarto. Até porque, ontologicamente, a moldura nada tem que ver com o quadro, não havendo nada neste que peça aquela moldura. Ou, se pede, reforça ainda mais o propósito decorativo. Mas, depois, olhamos para o quadro e para a moldura e gostamos do todo como se passassem a fazer parte um do outro. Connosco, seres humanos, passa-se o mesmo. Com a diferença, certamente mais rara na pintura ou fotografia, de não faltarem molduras e passe-partouts cuja importância é esmagadoramente maior e mais vistosa do que a do seu conteúdo.

13 setembro, 2023

LUTA INGLÓRIA

Desde o início do Verão que tenho sempre no congelador uma daquelas caixas com dez Magnum de três qualidades e tamanho mais pequeno: chocolate simples, chocolate com amêndoas, e chocolate branco, que no início estranhei mas depois entranhei. Não há vez alguma no supermercado em que não diga a mim mesmo que já não compro mais, pronto, chega, não pode ser, não faz sentido, uma injustificável parvoíce num homem já com idade para ter juízo. Mas, depois, tudo faço, e por vezes de modo até insidioso, para passar por eles e trazê-los, dizendo a mim mesmo que será para comer só um de cada vez, conseguindo a perversa parte de mim afagar e convencer a outra pura e ingénua que assim será. E, na verdade, sempre que em casa abro um gelado é mesmo com a ideia de ser só esse. Mas também não é menos verdade que nunca o consegui. Fatal como o destino, é sempre aos pares que os avio, e até já chegaram a ser três. Por ser sensata e racional, a minha vontade de ter vontade de só comer apenas um gelado é sincera e honesta. Só que esta vontade da vontade vem da razão enquanto a vontade propriamente dita vem da boca, e isso é um problema. O coração, órgão bem escondido e protegido na caixa torácica, pode lá ter as suas razões que a razão desconhece. A boca também tem as suas e apesar de neste caso a razão bem as conhecer, pouco pode contra elas. Estes Magnum, que ainda por cima são minis, representam uma magna derrota para a minha razão a qual, dizem alguns filósofos, é magna, mas que neste caso fica reduzida à sua mini importância. Uma luta inglória, restando-me o consolo, mutatis mutandis, do mesmo Pascal que opinou sobre o coração apesar de não ser cardiologista, quando me diz (§414) que Les hommes sont si nécessairement fous que ce serait être fou par un autre tour de folie que de n'être pas fou.

12 setembro, 2023

RELER

Ninguém come apenas uma vez na vida uma comida de que gosta, só porque já a comeu uma vez. Isso, porque o prazer dessa primeira vez não substitui o prazer das seguintes. O mesmo acontece com uma música que se ouviu, um quadro ou um filme que se viram, uma cidade aonde se foi ou uma pessoa com quem se gostou de conversar. Porquê, então, só ler uma vez um livro do qual se gostou bastante? Isso fará sentido se a leitura for apenas funcional: a trama, quem são as personagens, onde e em que tempo decorre a acção, se A casou com B e se morreu no final, quem é o assassino. Mas se olharmos para o intrínseco prazer da leitura como o da música ou da pintura, porque não repetir esse prazer? Por isso é bom ter tanto de releitor como de leitor. Claro que havendo tantos livros que ainda não se leram, não se pode dedicar o tempo só a reler. Mas a ideia não é reler um livro inteiro, apenas pedaços cujo rasto se vai apagando com o tempo como o rasto de um pastel de nata após minutos, e isso enquanto se faz uma ou duas novas leituras. Mesmo que não se esqueça o eixo narrativo dos livros já lidos, a volúpia literária de certas passagens, a riqueza psicológica ou transmissão de ideias noutras, só é recuperável com a sua leitura efectiva e não com a reconfortante consciência de ter lido o livro como a de quem despachou uma tarefa. E até se podem descobrir coisas que escaparam na primeira leitura, pois continuando o livro a ser o mesmo, nós já não o somos quando a ele regressamos, como a água do rio onde nos banhamos segunda vez. Daí ser possível reler infinitamente os mesmos livros com a mesmo prazer da primeira vez que foram lidos. Ter esse livro para ler e, contrariamente à liberdade invocada pelo poeta, fazê-lo mesmo, tornando-se num dever que dá mesmo muito prazer cumprir. 

11 setembro, 2023

VENCEU, CLARO

Logo após o 25 de Abril, ecoava nos ouvidos a frase: «O Chile Vencerá!». A minha melancolia perante esta crença que agora ecoa silenciosamente na minha memória, vinda de um tempo desaparecido, não é a mesma que diante do irreversível silêncio de um anfiteatro grego. É antes motivada pela pueril consciência daquelas pessoas a gritar uma frase que desafia o tempo como o forcado desafia o touro antes deste investir, porque apesar de acreditar que vai conseguir pegá-lo, também o respeita e teme. Só que o tempo, como alguns tigres, diferentes do touro na arena, é feito de papel, deixando-se naturalmente pegar para nele escrever um texto já previamente escrito. Quando um chileno acredita que a sua selecção irá ganhar à do Brasil, exprimindo o seu desejo na frase "O Chile vai vencer!", ou uma pessoa acredita que irá vencer um cancro, sabe que isso pode não acontecer. Ainda assim, a esperança é legítima por se acreditar que uma feliz conjugação de factores permite concretizar o desejo. Só que há uma enorme diferença entre "O Chile Vencerá" de 1974 e a vitória do Chile num jogo de futebol ou a vitória sobre um cancro. Essa diferença chama-se história. O Chile iria sempre vencer pois a história a isso obriga, como se esta fosse um árbitro comprado que permite saber antecipadamente quem irá ganhar o jogo, neste caso, as democracias contra as ditaduras militares dos países da outrora célebre Latina America, dos Jafumega, jogos disputados em Buenos Aires, Montevideu, Brasília, Assunção e sim, Santiago do Chile. Daí que gritassem como quem diz «Exigimos que depois do Inverno venha a Primavera!», «Queremos que depois de 1974 venha 1975!». sem perceberem que lêem a história como quem lê um livro policial cujo final já lá está, só não se sabe é quando. 

10 setembro, 2023

DESINTRODUÇÃO À ÉTICA

Após todos estes anos, devo concluir que, não abdicando categoricamente de certos categóricos princípios, sou mais homem de fins, reconhecendo, todavia, que há-de ser no meio que está virtude, embora com a desconfortável noção de tal meio não existir.

08 setembro, 2023

VOZES DO SILÊNCIO

Ninguém dispõe aleatoriamente os livros nas prateleiras. Mas há excepções: a pintora Maria Helena Vieira da Silva dispunha-os por cores, fazendo com que literatura, ensaio, sociologia, romance, poesia, jardinagem, enciclopédia, arte, português, russo, contemporâneo, medieval, Ionesco ou Balzac, tudo isso perdesse significado, podendo-se assim juntar a Ilíada e um Manual de Primeiros Socorros só pelas cores, embora também não fosse descabido pelos respectivos conteúdos. Descubro algo parecido nas conversas quando por acaso duas pessoas se encontram na rua ou no supermercado, ou mesmo por vezes quando fazem por se encontrar. A única diferença é serem sons em vez de cores, cujos timbres, mais sopranos ou baixos, mais tenores ou barítonos, têm muito de cor, ou seja, mais quentes, frios, metálicos, pregnantes, leves, baços, cristalinos. As conversas estão lá, como os conteúdos dos livros na prateleira, mas o que só mesmo conta são os meus sons para lhe provar que tenho a consciência de ele estar à minha frente, e os sons do outro para me provar que tem a consciência de que estou à frente dele, numa espécie de "You Jane, me Tarzan". Daí que talvez não fosse necessário falar, havendo formas mais simples de comunicação, como as cores numa estante. As pessoas diriam "Olá!", e em vez de falarem, poderiam assobiar, chilrear, uivar (como no O Último Tango em Paris), bater palmas, dar saltos, fazer coreografias ou caretas, ou até mesmo ligarem o cronómetro do telemóvel para ficarem apenas a sorrir durante quatro minutos e trinta e três segundos. Depois era só acenar com o braço e ir cada uma para seu lado até ao encontro seguinte, algures nas prateleiras dos chocolates, legumes ou detergentes, tão silenciosamente coloridas como as dos livros ou uma conversa entre duas pessoas.

07 setembro, 2023

A CLAREIRA

Recordar a festa de aniversário dos 7 anos, estar na cama a ler aos 12,  uma manhã de praia aos 15 e a primeira aula como professor, faz tudo parte da memória episódica. O que vai emergindo na minha consciência são acções ocorridas no espaço e que por isso não podem coincidir na minha tela mental. Não consigo estar ao mesmo tempo a pensar na festa de aniversário e na primeira aula, a invocação de uma implica o apagamento da outra. Paul Klee, filho de um professor de música, casado com uma pianista, tocando violino uma hora por dia durante anos, estava tão ligado à música que hesitou entre esta e a pintura. Esta passagem do seu diário ajuda a entender a sua escolha: «A pintura polifónica é superior à música porque o temporal é aí mais espacial. A noção de simultaneidade revela-se aí ainda mais rica». Faz sentido. A música é um entrelaçamento de sons e silêncio dispostos num tempo sem espaço, enquanto a pintura é um entrelaçamento de formas e cores dispostas temporalmente no espaço. Daí que na música cada som morra ao ser substituído por outro, uma sonata se reduza a nada logo que deixa de ser tocada. O tempo na música sofre, pois, como sugere Klee, de um problema de espaço. O que já não acontece com a pintura, seja mais figurativa ou mais abstracta, ao reduzir a multiplicidade da consciência temporal a uma simples imagem. Dá-se, assim, um fenómeno curioso: o que acontece na nossa tela mental onde se projecta a memória episódica através de pequenos clarões que se acendem e apagam, está mais próximo da música (ou mesmo do literário fluxo de consciência), onde não há telas, apenas sons que também se acendem e apagam, do que na tela física da pintura, onde o espaço e o tempo se entrelaçam, podendo-se assim assistir, em simultâneo, a diferentes memórias. Já não como clarões, antes sólidas imagens reveladas na clareira de um bosque cerrado, para se prenderem tão firmemente aos nossos olhos como a duas mãos.

06 setembro, 2023

O PARADIGMA PERDIDO

Edgar Morin já vai com 102 anos. Quando, há décadas, eu via uma pessoa com 100 anos, era com um misto de perplexidade e fascínio que, associando o seu nascimento a uma época histórica, pensava na sua coexistência com remotos acontecimentos do século XIX ou inícios do século XX, e de eu estar a coexistir com essa pessoa, o que faria com que me sentisse, especularmente, a coexistir com esses acontecimentos. Ainda hoje fico impressionado ao descobrir que certas pessoas do século XIX pelas quais me interesso, morreram já depois de eu ter nascido, ou seja, coexisti com elas. Acontece que um homem com 102 anos nasceu em 1921, já não podendo ter visto Nietzsche como chegou a ver Giovanni Papini ainda criança, embora sem saber quem era, nem ter estado na guerra de 14-18. Nasceu apenas 39 anos antes de mim, a idade de um jovem. Daí, hoje, não ver uma pessoa com 102 anos tão velha como via dantes, pois apesar dos seus 102 anos, parece, historicamente, um jovem. Mas não é. Um engano que se explica por nem sempre me lembrar que também já não o sou, e que, para uma criança actual, o ano em que nasci é como foi para mim o final do século XIX ou inícios do século XX. 102 anos é mesmo muito tempo, e embora o tempo passe a fugir, nós não fugimos do tempo. 

05 setembro, 2023

ESPELHOS

Torres Novas, 2023

Num pequeno romance chamado "A Lentidão", Milan Kundera compara o rei checo Vaclav (sec. XIV) com Carlos, agora rei britânico, na altura apenas príncipe. Com uma certa graça, explica que enquanto o primeiro conseguia andar, incógnito, pelas tabernas no meio do povo, Carlos, nem numa floresta virgem ou escondido num bunker consegue escapar aos olhos do mundo. Partindo desta comparação, direi que, hoje, todos queremos ser Carlos, alcançar a glória de Carlos que, mesmo sem nada fazer, tem os olhos do mundo sobre si. Houve um tempo em que se chegava a casa para, na sombra,  se sentar no sofá a ver televisão, assistindo ao espectáculo do mundo e dos seus protagonistas. Hoje, trocando-se cada vez mais a televisão pelas redes sociais, chega-se a casa sobretudo para especular. Começa-se mal se entra no elevador, neste caso fisicamente, mas continuando depois, no recato do lar, através de um computador ou do telefone, onde quase tudo o que se faz serve para especular. Não nos vemos directamente uns aos outros, andando antes meio perdidos entre os nossos reflexos como nas salas de espelhos das antigas feiras.

01 setembro, 2023

DIA FELIZ

Finalmente, mês e tal depois, apresento-me ao serviço. Já mal podia esperar por este dia. Doravante, deixo de ter umas férias de um mês, para passar a ter, durante um ano inteiro, uma miríade de fins-de-semana. As férias constituem apenas uma unidade na qual são expulsos os fins-de-semana. Pelo contrário, hoje apresento-me e já estou a entrar de fim-de-semana, esse chão sagrado que as férias fizeram esquecer. E cinco dias depois, já a 8 de Setembro, um outro, e assim durante todo o Setembro, Outubro, Novembro...até Agosto, carradas de fins-de-semana, fins-de-semana em catadupa, mãos cheias de fins-de-semana, lenta e suavemente saboreados sem chegarem a encher a barriga como nesse enjoativo banquete romano que são as férias, durante as quais se vomitam dias de tédio. Ou se masca tempo, como dizia o Cioran, esse grande humorista. Beckett, que não lhe ficava atrás mas com outro sotaque, escreveu Dias Felizes, dias sem data. Sei, porém, que há um Dia Feliz que é o dia 1 de Setembro, abrindo a porta aos dias felizes que irei de novo recuperar. E não me venham dizer que isto é conversa de treta, que na volta ando a fazer Reiki, acções de formação em Mindfulness promovidas pela Junta de Freguesia, ou que agora é que me haveria de dar para ler os livros do Paulo Coelho. Nada disso. Tive durante a adolescência a minha fase dedicada à Anti-Psiquiatria. Creio ser o R.D. Laing que considerava não ser o esquizofrénico um falhado por não se conseguir adaptar à sociedade, mas um tipo cheio de sorte por conseguir não se adaptar. Ora, posso ser muitas coisas, mas esquizofrénico julgo não ser, ou se sou nunca ninguém mo disse. Mas se houver por aí alguma síndrome que explique a minha felicidade por regressar ao trabalho, quero lá saber. Desconfortável vai ser hoje enfrentar colegas com aquele ar de Perséfone no dia em que tem de voltar para o submundo, e eu todo contente com ar de Perséfone no dia em que sobe ao mundo solar, verde e florido para a parte do ano na qual vai ser feliz. Neste caso, não há dois mundos, mas uma mesma escola. O que há são estações do ano desencontradas como nos dois hemisférios e no meu respira-se melhor.

31 agosto, 2023

A LESMA

Quando era adolescente, umas das minhas bandas preferidas tinha um álbum chamado Too Old to Rock 'n' Roll, Too Young to Die. Lembro-me, como se fosse hoje, de estar a matutar neste título, com dificuldade em perceber a sua primeira parte, ao contrário da primeira. Hoje, após consideráveis  décadas, não só não tenho dificuldade em percebê-la, como vou até mais longe, assumindo antes, e até com algum alívio, estar old enough to Rock 'n' Roll. Quanto à segunda parte, e apesar da minha já respeitável idade, tudo na mesma como a lesma. A história pode avançar, o Angelus Novus bater as asas alvoraçado, tudo ser composto de rápida mudança, porém, diante da morte seremos sempre adolescentes, apenas um pouco mais lúcidos e conformados do que um adolescente electrificado pelo Rock n' Roll. Digamos que embalados por uma sonata de Schubert, crentes de que possa sensibilizar o anjo para bater as asas mais devagar.

30 agosto, 2023

ESTUDO DA ALMA

Se começarmos a repetir várias vezes uma palavra, entrando naquele estado quase hipnótico de pura concentração nessa palavra, o que fica é apenas um desconsolado som sem significado. Ainda com o Sol longe de aparecer, enquanto esperava por uma hora decente para ir caminhar, aconteceu-me isso com a palavra "Psicologia". Psicologia, Psicologia, Psicologia, Psicologia, Psicologia, Psicologia, Psicologia, até se diluir em quatro sílabas sem sentido. Sentido que, entretanto, recupero, mas na sua origem grega: estudo da alma. E fez-se-me luz: abandonar a ociosa invocação da sua etimologia como faço sempre na minha primeira aula de Psicologia, regredindo dois mil e tal anos para verdadeiramente recuperar esse sentido original. Mas que, no fundo, não se trata de uma regressão, nem de uma recuperação, pois, apesar da sua vetustíssima idade, até bem anterior à da Psicologia, tal estudo foi-se sempre renovando como se acabado de nascer a cada século e a cada ano. Chama-se Literatura.

29 agosto, 2023

VIDROS

Numa cidade, a margem oposta à mais bonita tem a vantagem e o privilégio de estar todos os dias de frente para ela, enquanto esta a desvantagem de estar de frente para a primeira. Ninguém vai  a Lisboa para ver Cacilhas, mas a Cacilhas para ver Lisboa. Com as cidades, não há como mudar a situação. Ao contrário dos seres humanos, que se servem de vidros. Uns, espelhados, para assim viverem com o seu reflexo. Mas uma enorme maioria vendo a outra margem pelo vidro de uma janela, acreditando todavia tratar-se de um espelho através do qual orgulhosamente se contemplam.

28 agosto, 2023

PUREZA

Oskar Kokoschka | Auto-retrato como artista degenerado, 1937

Um estudo científico no campo da Psicologia, mostra uma ligação entre princípios morais como os de puro e impuro, ao discurso de ódio. A Psicologia interessa-me pouco, mas a moral bastante. E o estudo levou-me directamente à ideia nazi de arte degenerada sendo, a fortiori, odiada, perseguida e destruída. Basta pensar nos padrões estéticos de Adolph Hitler e do que era para si uma arte pura e ideal, para logo reagir com um enorme bocejo. E o mesmo se passa no campo da moralidade, no qual a pureza, tão geométrica, simétrica, perfeita e regular como a que Hitler projectou para a nova Berlim, não foi feita para seres humanos que também são animais. Inconscientes macacos com um pincel na mão diante de um tela, era mais ou menos isso que os estetas nazis viam nos artistas degenerados. Como disse, a Psicologia interessa-me pouco, mas aprende-se sempre alguma coisa.

26 agosto, 2023

CLASSIS MEDIOCRITAS

Diz a personagem de um livro que acabei de ler, que não há coisa mais triste e horrorosa do que as classes baixas, sendo a identificação com os pobres uma atitude de mau gosto. Como eu a compreendo. Mas também não me parece errado pensar que, embora falando mais baixo, melhor perfumadas, mais elegantes e não tatuadas, o mesmo se passa com as classes mais altas, sendo a identificação com os mais ricos uma atitude de não maior gosto. Fosse a filosofia política uma religião e seria a classe média o seu povo eleito rumo ao Algarve no Verão ou ao centro comercial no Inverno.

25 agosto, 2023

A CABINE

Graças a não ter carro há dois anos, sensatez que me surpreende numa cabeça tão pouco dada a ela, percebi, tão recentemente como tardiamente, a minha profissão de sonho: camionista. Devido à superior altura dos autocarros que passei a frequentar, o lento processo de ultrapassagem aos muitos camiões por que passo na auto-estrada trouxe-me a visão de um mundo novo, tão perfeito mas também tão real como as minhas duas mãos: a do camionista na sua torre de marfim climatizada, sentado a ouvir música. E o que sinto, não tenho vergonha de o dizer, é inveja e alguma melancolia pela consciência dos anos perdidos. Ingenuamente, cheguei a acreditar ter uma profissão de sonho por ser pago para falar de coisas sobre as quais falaria com enorme prazer em cafés, se os frequentasse, ou em jantares, se jantasse. Mas fosse camionista, para além do prazer em atravessar os dias a ouvir música ou audiolivros, sabia que, ao contrário do que se passa com um professor diante de uma turma, a mercadoria chega sempre ao seu destino, onde também está sempre alguém à sua espera.

24 agosto, 2023

CHAPÉU-DE-SOL

As línguas são corpos dinâmicos nos quais muita coisa perdura no tempo mas também muita desaparece ou se transforma, adquirindo novos significados. Há dias, tive que explicar o que é uma sombrinha, artefacto concebido para proteger as senhoras do Sol, mas que no século XX, e sem mudar o nome, já servia para proteger as senhoras da chuva. Nome tão vulgar que um dos chocolates mais populares era mesmo a sombrinha de chocolate da Regina. Já os homens não podiam usar as pequenas e coloridas sombrinhas, mas pretos chapéus-de-chuva. Mas o que para muita gente é um chapéu-de-chuva, para muita outra já será um guarda-chuva. No norte, a própria combinação soa absurda, uma vez que por lá, chapéus, apesar de muitos, são apenas os que se põem na cabeça, ou punham, já que a velha boina deu lugar ao boné, ou mesmo a coisa nenhuma, até porque o cabelo, cada vez mais cortado em sofisticadas barbearias, precisa do palco craniano liberto para exibir os seus maneirismos. Mas dizia eu que nas línguas, e quase sempre por força das circunstâncias históricas, há muita coisa que se transforma para adquirir novos significados. Assim, do mesmo modo que as sombrinhas do século XIX passaram de proteger do Sol para proteger da chuva, talvez já tivesse faltado mais para que o antigo e clássico chapéu-de-chuva, ou guarda-chuva, passe a ter um significado obsoleto, por já não ser usado para proteger da chuva, mas do Sol, passando apenas a chamar-se chapéu-de-sol ou guarda-sol. E assim, do mesmo modo que hoje vemos fotografias e pinturas do século XIX onde se vêem senhoras em ensolarados jardins com as sombrinhas que as nossas mães usavam por causa da chuva, talvez no futuro se venha a estar diante de fotografias ou filmes do século XX onde se vêem pessoas a usar o chapéu-de-sol ou guarda-sol por causa da chuva.

23 agosto, 2023

NIRVANAS

Um português, um espanhol, um francês ou um italiano devem sentir o mesmo quando entram de férias. Porém, mesmo que nenhum deles saiba Latim, língua que eu também não sei, quando um espanhol, um francês ou um italiano pensam em férias ou dizem que estão de férias, fazem mais jus ao seu real sentido do que um português. O Latim pode ser uma língua morta mas a palavra que dá origem a vacación, vacances ou vacanza, que remete para vazio esvaziar, vai bem mais ao âmago do que são as férias, ou melhor dizendo, do que deveriam ser, uma vez que o são cada vez menos. Entende-se assim a sua maior riqueza semântica e conceptual do que a mais vulgar origem da palavra férias, tão insossa, que me sinto isentado de a invocar. Se, entretanto, não estiver enganado ao pensar que a reforma é uma espécie de férias vitalícias, e creio que não estou, e que dura enquanto pelo menos a vida, que não é vitalícia, durar, poderei assim acalentar a esperança de que no dia em que perfizer 66 anos e 4 meses de vida, irei finalmente poder atingir o Nirvana. Isto, claro, se até lá não se der a lamentável situação de atingir aquele outro Nirvana que leva demasiado à letra o sentido etimológico de vacación, vacances ou vacanza, mas do qual também um português, que não partilha a mesma etimologia, não escapará, por muito Ómega 3, rúcula e iogurtes fortalecidos com probióticos que possa ingerir.